segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Adeus, tia Jacira

     Minha tia faleceu hoje, 07/09/2014, tia Jacira, uma pessoa amada e querida por todos aqueles que a conheceram. Ainda em lágrimas escrevo esse texto, não apenas para desabafar, mas para deixar uma profunda reflexão a todos.

     “Um dia você aprende que o tempo não é algo que se possa voltar atrás”, como todos nós, tive muitos arrependimentos e várias vezes quis voltar no tempo ao longo da minha vida, mas nunca essa passagem do Menestrel de Shakespeare tinha se manifestado de forma tão visceral em mim. Já perdi outras pessoas queridas, mas dessa vez a dor é maior, se junta à culpa, um peso que carregarei até o fim:

     Ela passou por duas cirurgias pesadas, tanto na primeira como na segunda ficou um bom tempo internada. Naquela velha correria inútil que nos suga a vida, não fui na primeira, só a vi quando ela voltou para casa, depois tivemos um almoço em família quando pudemos conversar mais e depois a vi de longe (foi a última vez), lembro que a cumprimentei dizendo: “recuperando aos pouquinhos, né tia?”, ela sorriu e respondeu que sim; na segunda internação, quando eu estava marcando o dia para ir visitá-la, ela teve alta pouco depois – de alguma forma inconsciente me sentia meio que “representado” por minha mãe, que passou várias noites com ela, o que é uma grande bobagem, pois cada um é cada um, só se pode representar a si mesmo. Aí vem o que mais me dói, que corrói só de lembrar: quando ela chegou pensei em visitá-la o quanto antes, mas achei melhor dar alguns dias, tenho muitos primos e tios que certamente estavam lá, e meu tio José Maria, marido dela – diga-se de passagem, uma pessoa forte que eu admiro e respeito muito –, falou comigo que ela estava melhorando, mas de forma quase automatizada, o que é normal quando se pergunta por alguém tão próximo que está doente. Enfim, fui adiando, tentando achar um tempo para ir lá em meio a minha agenda com os “problemas” do dia-a-dia. Depois tive um resfriado pesado. Outra vez, quando podia ter ido, meu pai ia junto, e como mal nos falamos não seria legal. Enfim, o tempo foi passando, passava sempre correndo pelo lote, olhando para casa dela esperando a ver na varanda, no portão, às vezes parava e pensava comigo, “puxa, não fui lá até hoje”, às vezes esquecia disperso em afazeres e planos, outra hora dizia convicto, tal dia eu vou, mas não fui, definitivamente não fui. Hoje, pensei de relance em ir lá, mas o dia passou e agora passou com ele a oportunidade: à noite, enquanto eu arrumava minhas coisas para o dia de amanhã, pedi uma pizza e ao pegá-la, recebi a triste notícia, minha tia havia falecido. [Meus olhos estão ardendo, a cabeça dói, amanhã volto a escrever...]

     A primeira reação foi de choque, de incredulidade, de embaraço, nem as lágrimas vinham, passei por várias pessoas e parentes, quando entrei no quarto dela, encontrei meus primos chorando ao lado da cama, a ficha caiu, não pude conter minhas lágrimas. Um remorso angustiante começou a entrar em mim, não havia mais tempo, não podia mais conversar com ela, mostrá-la com a minha simples presença o quando ela significava para mim, não ter ido lá, não a ter olhado nos olhos era como se eu tivesse dito o contrário; eu tive tempo, isso é o que mais machuca.

     Tia Jacira era uma pessoa admirável, boa filha (sim, minha avó ainda é viva, e elas sempre tiveram uma relação muito além de mãe e filha, mas de amigas, minha tia foi o primogênito, a única mulher, de cinco), boa esposa, boa mãe, boa costureira, boa cozinheira e boa tia. Ficaremos com a lembrança dos bons momentos que vivemos, escolhi destacar aqui apenas um, pois tenho certeza que mais ninguém sabe: quando criança, fugindo do meu pai, fui até à casa dela, precisava ganhar tempo; lá tem uma daquelas enciclopédias antigas da Barsa, que vez ou outra eu pegava emprestado para fazer trabalhos escolares, foi a primeira ideia que surgiu na minha cabeça, pedir um livro; cheguei com a cara de menino assustado, pedindo o livro para fazer trabalho, só tinha um detalhe, era final de Dezembro! Isso mesmo, esqueci que estávamos em plena férias e ela podia desconfiar, o que de fato aconteceu, ela me disse: “uai Moisés, mas você não está de férias?!”, eu nem lembro a desculpa que dei, só sei que foi a mais esfarrapada do mundo, mesmo assim, ela sorrindo fingiu de boba, foi lá com toda boa vontade e pegou para mim o livro, sabendo que eu o largaria em poucos minutos.

     Lembrando disso, vêm várias outras memórias de pessoas próximas que se foram, possivelmente ocorre o mesmo contigo que está lendo, mas aqui vou destacar brevemente apenas aquelas que cresci ao lado, no mesmo lote que vivia a tia Jacira. São duas: minha tia Maria do Carmo (que a gente chamava de tia Carma), uma pessoa fora de série, que vivia mais para os outros do que para si mesma, que batalhava para criar os filhos e literalmente todas as crianças ao seu redor, sempre com um belo sorriso no rosto; e meu avô, Floriano, que não sabia ler, mas que nos ensinou muitas lições, sobretudo com suas atitudes.

     Essa semana estive lendo justamente Sartre, filósofo que argumenta à exaustão como somos responsáveis pelos nossos atos e escolhas, como não há transferência de tal responsabilidade, como cabe a nós fazer projetos, significar no mundo, neste mundo, como é na ação que os outros nos conhecem, como é parar e agir com autenticidade ou simplesmente ir vivendo seus dias na “má-fé”, em outras palavras, em vez de tomar atitudes, ir tão somente se deixando levar. Sou agnóstico, e como o autor mencionado, também não coloco esperança em vida após a morte, não acredito em espírito, não acredito em deus, não vejo sentido para se agarrar em tais hipóteses. Mas quem não quer que seja de fato verdade, reencontrar com os entes queridos num lugar de paz? Todavia, a possibilidade de tal existir é uma possibilidade puramente lógica, isto é, da mesma forma que a princípio tudo é possível, nada mais, não há qualquer fundamento real para crermos nisso. Mesmo assim, similar àquela situação de dar um tiro no escuro, no vazio, disse em lágrimas umas palavras ao vento, não me justificando por ter deixado de visitá-la, mas a pedindo perdão. Sinceramente, não tenho esperanças de ela ter de algum modo me ouvido, não tenho fé (respeito quem tem motivos pessoais para tal), seja como for, nada vai mudar o que passou, assumo meu erro de não ter ido lá, é preciso encarar os fatos de frente, levarei comigo essa culpa; mas pude aprender com isso o quanto realmente somos frágeis e que mais do que nunca, “não devemos deixar para amanhã o que podemos fazer hoje”. Termino com mais uma bela passagem do Menestrel:

     “Descobre que as pessoas com que você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa, por isso, devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos.” (SHAKESPEARE, W.).