Minha tia faleceu hoje, 07/09/2014, tia Jacira, uma pessoa
amada e querida por todos aqueles que a conheceram. Ainda em lágrimas escrevo
esse texto, não apenas para desabafar, mas para deixar uma profunda reflexão a
todos.
“Um dia você aprende
que o tempo não é algo que se possa voltar atrás”, como todos nós, tive
muitos arrependimentos e várias vezes quis voltar no tempo ao longo da minha
vida, mas nunca essa passagem do Menestrel de Shakespeare tinha se manifestado
de forma tão visceral em mim. Já perdi outras pessoas queridas, mas dessa vez a
dor é maior, se junta à culpa, um peso que carregarei até o fim:
Ela passou por duas cirurgias pesadas, tanto na primeira
como na segunda ficou um bom tempo internada. Naquela velha correria inútil que
nos suga a vida, não fui na primeira, só a vi quando ela voltou para casa,
depois tivemos um almoço em família quando pudemos conversar mais e depois a vi
de longe (foi a última vez), lembro que a cumprimentei dizendo: “recuperando
aos pouquinhos, né tia?”, ela sorriu e respondeu que sim; na segunda internação,
quando eu estava marcando o dia para ir visitá-la, ela teve alta pouco depois –
de alguma forma inconsciente me sentia meio que “representado” por minha mãe,
que passou várias noites com ela, o que é uma grande bobagem, pois cada um é
cada um, só se pode representar a si mesmo. Aí vem o que mais me dói, que
corrói só de lembrar: quando ela chegou pensei em visitá-la o quanto antes, mas
achei melhor dar alguns dias, tenho muitos primos e tios que certamente estavam
lá, e meu tio José Maria, marido dela – diga-se de passagem, uma pessoa forte
que eu admiro e respeito muito –, falou comigo que ela estava melhorando, mas
de forma quase automatizada, o que é normal quando se pergunta por alguém tão
próximo que está doente. Enfim, fui adiando, tentando achar um tempo para ir lá
em meio a minha agenda com os “problemas” do dia-a-dia. Depois tive um
resfriado pesado. Outra vez, quando podia ter ido, meu pai ia junto, e como
mal nos falamos não seria legal. Enfim, o tempo foi passando, passava sempre correndo
pelo lote, olhando para casa dela esperando a ver na varanda, no portão, às
vezes parava e pensava comigo, “puxa, não fui lá até hoje”, às vezes esquecia
disperso em afazeres e planos, outra hora dizia convicto, tal dia eu vou, mas
não fui, definitivamente não fui. Hoje, pensei de relance em ir lá, mas o dia
passou e agora passou com ele a oportunidade: à noite, enquanto eu arrumava
minhas coisas para o dia de amanhã, pedi uma pizza e ao pegá-la, recebi a
triste notícia, minha tia havia falecido. [Meus olhos estão ardendo, a cabeça
dói, amanhã volto a escrever...]
A primeira reação foi de choque, de incredulidade, de
embaraço, nem as lágrimas vinham, passei por várias pessoas e parentes, quando
entrei no quarto dela, encontrei meus primos chorando ao lado da cama, a ficha
caiu, não pude conter minhas lágrimas. Um remorso angustiante começou a entrar
em mim, não havia mais tempo, não podia mais conversar com ela, mostrá-la com a
minha simples presença o quando ela significava para mim, não ter ido lá, não a
ter olhado nos olhos era como se eu tivesse dito o contrário; eu tive tempo,
isso é o que mais machuca.
Tia Jacira era uma pessoa admirável, boa filha (sim, minha
avó ainda é viva, e elas sempre tiveram uma relação muito além de mãe e filha,
mas de amigas, minha tia foi o primogênito, a única mulher, de cinco), boa
esposa, boa mãe, boa costureira, boa cozinheira e boa tia. Ficaremos com a
lembrança dos bons momentos que vivemos, escolhi destacar aqui apenas um, pois
tenho certeza que mais ninguém sabe: quando criança, fugindo do meu pai, fui até à casa dela,
precisava ganhar tempo; lá tem uma daquelas enciclopédias antigas da Barsa, que
vez ou outra eu pegava emprestado para fazer trabalhos escolares, foi a primeira
ideia que surgiu na minha cabeça, pedir um livro; cheguei com a cara de
menino assustado, pedindo o livro para fazer trabalho, só tinha um detalhe, era final de Dezembro! Isso mesmo, esqueci que estávamos em plena férias e ela podia
desconfiar, o que de fato aconteceu, ela me disse: “uai Moisés, mas você não
está de férias?!”, eu nem lembro a desculpa que dei, só sei que foi a mais
esfarrapada do mundo, mesmo assim, ela sorrindo fingiu de boba, foi lá com toda
boa vontade e pegou para mim o livro, sabendo que eu o largaria em poucos
minutos.
Lembrando disso, vêm várias outras memórias de pessoas
próximas que se foram, possivelmente ocorre o mesmo contigo que está lendo, mas
aqui vou destacar brevemente apenas aquelas que cresci ao lado, no mesmo lote que
vivia a tia Jacira. São duas: minha tia Maria do Carmo (que a gente chamava de
tia Carma), uma pessoa fora de série, que vivia mais para os outros do que para
si mesma, que batalhava para criar os filhos e literalmente todas as crianças
ao seu redor, sempre com um belo sorriso no rosto; e meu avô, Floriano, que não
sabia ler, mas que nos ensinou muitas lições, sobretudo com suas atitudes.
Essa semana estive lendo justamente
Sartre, filósofo que argumenta à exaustão como somos responsáveis pelos nossos
atos e escolhas, como não há transferência de tal responsabilidade, como cabe a
nós fazer projetos, significar no mundo, neste mundo, como é na ação que os
outros nos conhecem, como é parar e agir com autenticidade ou simplesmente ir vivendo seus dias na “má-fé”, em outras palavras, em vez de
tomar atitudes, ir tão somente se deixando levar. Sou agnóstico, e como o autor mencionado, também não coloco esperança em vida após a morte, não acredito em
espírito, não acredito em deus, não vejo sentido para se agarrar em tais
hipóteses. Mas quem não quer que seja de fato verdade, reencontrar com os entes
queridos num lugar de paz? Todavia, a possibilidade de tal existir é uma
possibilidade puramente lógica, isto é, da mesma forma que a princípio tudo é
possível, nada mais, não há qualquer fundamento real para crermos nisso. Mesmo
assim, similar àquela situação de dar um tiro no escuro, no vazio, disse em
lágrimas umas palavras ao vento, não me justificando por ter deixado de
visitá-la, mas a pedindo perdão. Sinceramente, não tenho esperanças de ela ter
de algum modo me ouvido, não tenho fé (respeito quem tem motivos pessoais para
tal), seja como for, nada vai mudar o que passou, assumo meu erro de não ter
ido lá, é preciso encarar os fatos de frente, levarei comigo essa culpa; mas
pude aprender com isso o quanto realmente somos frágeis e que mais do que nunca,
“não devemos deixar para amanhã o que podemos fazer hoje”. Termino com mais uma bela passagem do Menestrel:
“Descobre que as pessoas com que você mais se
importa na vida são tomadas de você muito depressa, por isso, devemos deixar as
pessoas que amamos com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos.”
(SHAKESPEARE, W.).